Crônicas

Histórias de um certo Aarão e Outros Casos Contados

# O tesouro da Serra do Curral #

(das histórias e lendas de Belo Horizonte recontadas por um segurança que recebia, em seu serviço, a visita ilustre de Aarão Reis)

(Leandro Bertoldo)

 
Caro amigo, você tem medo de fantasmas? Sim ou não? Pois é... Durante algum tempo hesitei se deveria ou não abrir esta história ao conhecimento de todos, ou melhor, estas histórias, pois foram muitas as contadas pelo meu amigo finado. Sinto-me um tanto perplexo com a possibilidade de me acharem desviado das idéias e quererem me internar num manicômio, mas como fugir da realidade de ter sido escolhido o seu ouvinte? De fato, o meu herói – pois acabou por se tornar para mim um grande herói – escolheu-me. Hesitei, como disse, por um bom tempo, suficiente para encher-me de coragem e perder o medo do que as pessoas poderiam dizer, o que inclui o leitor e, respeitosamente, dar-lhes uma bela e ostentosa banana. Não, não estou nervoso. É apenas um desabafo íntimo. É preciso convir que uma pessoa que recebe, pontualmente como se verá, a visita de um ectoplasma ilustre, com um gosto refinado para o café e um bom papo madrugada à dentro e que, além disso, vinha guardando e duvidando se deveria ou não dizer, mas louco para faze-lo, merece um instante de vazão. Caso me contradigam, dizendo: “Você é um louco”; “fanfarrão”; “contador de histórias”, não tem importância. Medo já não tenho mais e, a propósito deste último xingamento, devo elucidar que seria injusto, pois histórias nunca soube contá-las, embora as aprecie; eu apenas as ouvia, por sinal muito bem traçadas e até diria interpretadas pelo meu amigo defunto, ou melhor, morto, pois defunto já não era mais. Antes que eu me renda à tentação de teorizar sob a diferença de ser defunto e ser morto, vamos à história, ou pelo menos parte dela.
Mas antes, também, que a paciência lhes falte, o que seria extremamente triste para mim que depois de tanto pensar se deveria ou não abrir, como disse, essas histórias, que neste caso é apenas a primeira, vamos a três rápidas considerações. Bem, primeiro a história em si não é de fantasma. Como devem ter percebido, a história me foi contada por um; segundo, e essa foi por muito tempo a minha dúvida de acharem-me louco, pois uma coisa é contar histórias de assombração como nossos avós nos contavam e que hoje fariam as crianças rirem ao invés de terem medo; e outra é contar histórias contadas por um fantasma, que é bem diferente. E a terceira consideração é a que se segue...
Num tempo muito distante, em datas muito longínquas, existiu um certo homem com nome senhorial, e no plural! Chamava-se Reis, Aarão Reis. Além do "s" do Reis, até o "A" era plural, o que mostra como era genial. E foi ele, juntamente com alguns amigos, que arquitetou a chamada Nova Capital que hoje nada mais é que a nossa tão linda e formosa cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Isso foi lá pelos anos de 1893. Puxa...! Mas o conheci na verdade, assim pessoalmente como venho dizendo, em uma livraria numa praça de Belo Horizonte há uns dois meses. E já se tornou o meu melhor amigo, amigo inseparável! Reis é mesmo um camarada especial... Engenheiro civil de formação, dotado de espírito público e profunda cultura humanística... Assim é o meu amigo Reis, que adentrou, com domínio incomum, os campos da eletrotécnica, da hidráulica, da termodinâmica, angariando respeito e elevado prestígio profissional. E foi além! Consagrou-se como administrador público, deixando raízes em todo o país através de significativas realizações nos cargos por que passou. Sintonizado com o seu tempo, Reis foi alçado a mandato efetivo, em reconhecimento ao seu valor e compromisso com as causas abolicionistas e republicanas! Nossa..., e hoje é o meu amigo Reis! Aarão Reis. E a partir de então tomamos café juntos no intervalo da ronda. É que sou segurança lá na livraria, sabe? Assim, levo um cafezinho gostoso que é pra reforçar o lanche das duas... Duas da manhã que é quando bate à porta o meu amigo Reis. Acham que estou brincando? É verdade! Reis, apesar de fantasma, é educado. Não chega entrando, não. Bate à porta como todo cidadão de bons costumes. Quando ele chega é uma fumaceira dos infernos, quer dizer, do céu, que é onde ele está com toda a sua glória de grande homem importante. Garboso, calvo e com o seu grande cavanhaque respeitoso, chega tossindo, coitado e, agora, deu até para espirrar. É que com tanta fumaça acabou ficando alérgico. Ele sempre chega dizendo: - “Cof, cof, cof... Toda vez é esse suplício... Na hora de vir para o mundo dos vivos é um tal de fumaça que não me agüento. Não sei por que motivo associam fumaça a fantasmas! Athim! Além de me fazer tossir agora me faz espirrar. Athim! É tanta fumaça que fiquei alérgico. Vou reclamar isso à divindade administrativa! Athim!”. - E assim chega o meu amigo Reis...
Bem, mas deixemos isso de fumaça só para os fantasmas, que ainda não é um problema nosso e vamos, afinal, à história... É que no novo mundo do Reis, lá o da fumaça, já não estavam mais aguentando de tanto o ouvirem contar as histórias daqui. Diziam: - “Reis, Reis... desse jeito teremos que mudar você do departamento dos fundadores para o departamento dos contadores de história!” - E não é que ele gostou da idéia? Tratou rapidinho de aprontar a documentação necessária e se transferiu de departamento. Ainda bem que lá no outro mundo também tem contadores de história, assim ele começou a participar do "Era Uma Vez na Calada do Céu", que é um projeto que reúne as almas todo primeiro domingo do mês que queiram contar suas histórias...
Bem, mas deixemos de tanta tagarelice e vamos logo à história. Lembro-lhes que se tiver alguma coisa estranha ou algo que não lhes agrade, quem me contou foi o Reis num dos nossos papos na Livraria. A bem da verdade foi o primeiro e este acontecimento acabou por modificar a minha vida por completo. Creio não ser necessário neste instante relatar o susto que tomei com sua primeira aparição. Deixo isso para a imaginação do leitor. Agora quero contar-lhes a história como marco inicial da minha modificação. Ele me contou uma história até muito conhecida das pessoas. A história de um homem muito azarado que resolveu procurar Deus para saber o porquê de seu azar. Essa história, como disse, muitas pessoas já conhecem e não é o motivo de nossa atenção. O motivo é extremamente outro, pois o que as pessoas não sabem é que essa história, tão contada e conhecida, começou aqui em nossa cidade. E foi no ano em que o Reis era ainda criancinha e que sua avó contava que existia em nossas terras um tesouro escondido. Uma mina de ouro em certo trecho da encosta da Serra das Congonhas, hoje Serra do Curral. Muitas pessoas, em vez da mina, falavam em um tacho cheio de moedas e barras de ouro. Outros, ainda, diziam que era um baú repleto de brilhantes e diamantes, e há aqueles que apostavam que era um escaravelho de ouro dos tempos dos gregos que por magia foi parar em nossas terras. Mas isso pouco importa... O que importa mesmo é que era uma riqueza de encher os olhos. Pois bem, o tesouro, seja ele qual era, foi procurado por muita gente. Vinham pessoas de todos os cantos do mundo, dos lugares mais conhecidos aos mais esquecidos para procurar a almejada riqueza, mas ninguém a encontrava. Até que certo dia, um português, mais feliz, depois de muito procurar, resolveu descansar em baixo de uma grande árvore de jacarandá. Enquanto todos procuravam, cada qual nos locais que pareciam mais propícios, o português, debaixo do Jacarandá, viu que a árvore quase já não tinha folhas e, ao olhar para as outras árvores ao redor, ficou curioso ao perceber que todas estavam bem esgalhadas e com muitas folhas. – “Por que só o Jacarandá estaria desfolhado?” – pensou. Bem, ele levantou e voltou ao trabalho, mas o Jacarandá não mais lhe saia da cabeça... Ele trabalhava, trabalhava e olhava o Jacarandá; trabalhava, trabalhava e olhava de novo. Ficou assim por um bom tempo até que um pensamento brotou-lhe na cabeça: - “O tesouro está ali, enterrado debaixo do Jacarandá! A árvore desfolhada no meio de tantas outras com folhas é um sinal!” Ele teve tanta certeza que naquele dia não mais procurou. Sentou de novo debaixo da árvore e esperou que todos fossem, como todos os dias acontecia, embora para suas casas tristes e desanimados. Quando se viu sozinho, danou a cavar, cavar e cavar até que ouviu um pam! Era um batido surdo da pá em uma coisa que parecia uma caixa... Viu que a tal coisa era imensa e percebeu que impedia que as raízes do Jacarandá respirassem aliviadas. Ele pensou: - “por isso as folhas caiam...” Assim, por mais esforço que fizesse, não conseguia tirar a caixa de lá. O tesouro era tanto, mas tanto, que, mesmo fechada, a caixa irradiava aqueles raiozinhos dourados pelos lados como nas figuras dos livros de contos infantis. O português realmente não teve dúvidas: acabou por achar o tão falado e almejado tesouro. Esperto como ele só, tratou de ficar bem caladinho e não contou nada a pessoa alguma. Como o tesouro era muita coisa e também muito pesado, o português o deixou lá enterrado e embarcou para a sua terra, onde pretendia chamar apenas seus amigos e parentes para ajudá-lo a desenterrar a riqueza encontrada. Acontece que ao chegar à sua casa o português adoeceu e, num tempo de três dias, morreu. Mas antes de morrer, ele entregou à sua esposa um mapa com o desenho do lugar onde estava escondido o tesouro. E sua mulher, como o marido, nada disse a ninguém. Esperou que o filho crescesse para lhe contar o precioso segredo e dar-lhe o mapa de presente. Assim, tempos depois e já com mais idade e conhecedor do segredo, o rapaz embarcou para o Brasil, vindo para o Curral Del Rei. Com o mapa nas mãos, procurou, procurou em todos os cantos. Cavou em vários lugares que lhe pareceram os mais acertados, inclusive debaixo do Jacarandá e... Nada! No dia seguinte a mesma coisa, e no outro a mesma, e no outro a mesma... Apesar de muito trabalho, nada achou. Em vão ele procurou a mina ou o tacho, nunca souberam o que era de verdade. Até que um dia, cansado como o pai, ele encostou-se no tronco da árvore para respirar por uns segundos. Mas quando fez isso, sentiu que os olhos lhe pesaram. Olhou para cima e viu que a árvore, como havia lhe dito a mãe, já não tinha folhas com exceção de uma única que estava quase se soltando bem no último galho acima de sua cabeça. Como havia cavado em todo redor da árvore e nada encontrara e como sentia o cansaço forçá-lo a deitar, um pensamento, como com o pai, no entanto bem diferente, lhe ocorreu: - “fora um sonho! Meu pai havia adormecido e sonhado com o tesouro enterrado debaixo da árvore”. Este pensamento deu-lhe um baque; também foi um pam surdo, mas não de pá na caixa e sim no seu coração. Olhou para o lado, bem pertinho de si, e viu que ainda havia um lugar para cavar, o último que sobrara. Não teve forças... Com dificuldade olhou para a folha, também última, que acabara de desprender de seu galho e, bruxuleando no ar, veio caindo, caindo... Antes que tocasse o chão, seus olhos, pesados, se fecharam e, para continuar sendo diferente do pai, não mais se abriram. E até hoje, diz a lenda, que o tesouro continua escondido, e o lugar... Bem, isso ninguém sabe dizer.
Mas a história não termina aí. Acontece que o moço havia se casado com uma moça brasileira, e desse casamento nasceu um menino muito sem sorte. Dizem que o motivo de sua falta de sorte era a ganância dos pais que só pensavam no bendito tesouro e que, como os avós, só queriam dividir com quem era da família. Só que isso é uma outra história...
Se tudo isso é verdade eu não sei. Só sei que me foi contada pelo meu amigo Reis. Se querem saber de outras histórias é só ir lá na Livraria e esperar pelo badalo das duas horas... Duas da manhã que é quando bate à porta o meu amigo Reis. É cada história...
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O GRANDE TEATRO

(Leandro Bertoldo)



__ Que gente horrível... nunca vi nada mais feio e repugnante... que nojo! Dizia o Governador Cuchulainn ao seu assessor, se referindo às pessoas que se aglomeravam na porta do teatro municipal da cidade por ocasião de sua nova inauguração. Ele havia sido destruído por um incêndio que se sabia ter sido criminoso, só não se tinha descoberto o culpado. O assessor, falando baixo com os cantos da boca, dizia ao Governador que aquelas eram as pessoas que tinham doado parte de seus salários para a reconstrução do teatro, e que agora estavam ali se sentindo glorificadas pela ação louvável que fizeram. __ Louvável que nada! Se deram dinheiro, deram porque quiseram! Está certo que eu pedi... Mas era só não terem dado, ora! Que culpa tenho eu de serem tão idiotas?


Dito isso, o Governador esboçou um grande sorriso e caminhou saudoso ao palanque montado em frente ao teatro para as celebrações festivas do evento demonstrando uma grande benevolência e humildade. Ao subir no palanque, o Governador cumprimentou as autoridades que lá estavam com apertos de mãos e abraços afetuosos. A banda tocava marchas carnavalescas num ritmo alucinado e era acompanhada por vozes que, a esta altura, já formavam uma grande multidão de entusiastas. Ao sinal do chefe do cerimonial, fez-se silêncio e todos se postaram dignamente para a execução do Hino Nacional que foi exibido com clamor e patriotismo efervescente. Após o Hino, o Governador se dirigiu ao microfone e, visivelmente emocionado, começou a proferir um discurso eloqüente e comovido: __ Caríssimos e amados concidadãos, povo da minha terra e orgulhos da nação! Hoje é um dia muito especial para todos nós. Hoje, o dia em que reinauguramos o teatro municipal de nossa cidade e que a partir de agora passa a se chamar Teatro Grande Rei, venho até vocês dizer que mais do que feliz, estou comovido... Sinto-me profundamente realizado em governar em uma cidade repleta de verdadeiros seres humanos dignos e honrados como vocês. O nome Grande Rei é uma homenagem a vocês, compatriotas, sangue do meu sangue, meus irmãos, que me fizeram sentir como um verdadeiro Rei nesses quatro anos de governo, graças ao amor radiado por seus corações... Hoje, o dia em que antecede as eleições, entrego-lhes o Teatro Grande Rei, não por questões políticas, mas por profundo respeito. As eleições que se aproximam nada significam perante a magnitude deste acontecimento que tenho o prazer de compartilhar com todos vocês... Aqui neste teatro, onde reina e floresce a arte, brilhará mais uma vez a encenação da vida que tem como artistas principais as nossas famílias, as nossas crianças, os nossos idosos, enfim, todos vocês que conduzem a história do nosso país...


A multidão estourou em gritos de vivas! Senhores, senhoras e crianças eram uma alegria só! A banda voltou a tocar ainda mais afinada e a festa era geral. O governador tirou do paletó um lencinho bordado com as inicias G.R e enxugou, comovido, uma lágrima no canto do olho. Acenava para a multidão e postava as mãos como em oração contida. Porém, no meio daquela euforia, adiantou-se para perto do palanque um rapaz de chapéu e sandálias, vestido com uma roupa simples e segurando, com uma das mãos, um cajado de galho de goiabeira. Ao chegar próximo do Governador, apontou com o cajado o ostentoso teatro e bradou corajosamente: __ OLHA A BUNDA BRANCA DO REI! OLHA A BUNDA BRANCA DO REI!


Se o silêncio tivesse rosto, sem dúvida alguma, aquele foi o dia de sua contemplação... Todos se calaram juntos como que por magia. Os senhores ficaram atônitos sem saberem o que fazer, a banda não mais tocava, as senhoras tapavam os ouvidos das crianças, e depois de alguns longos segundos a gritaria recomeçou, mas agora eram protestos que se ouviam contra o rapaz que continuava bradando loucamente __ “OLHA A BUNDA BRANCA DO REI”! OLHA A BUNDA BRANCA DO REI! Ao primeiro sinal de linchamento por parte da multidão em relação ao desordeiro, o Governador interveio pacientemente: __ Calma, meu povo, calma... Não façam nada contra este pobre rapaz... Afinal, todos têm o direito de se pronunciarem como quiserem! Antes de condenarmos sua atitude, veremos o motivo de sua... hã... bem: abundante coragem e indignação...


Os aplausos eram cada vez mais comovidos diante da bondade e profunda ponderação do Governador. Um pequeno grupo ensaiou uma torcida que foi logo adotada por todos. Glorificavam-se aos gritos de __ “Viva Cuchulainn! Viva Cuchulainn!” O Governador fez um sinal ao povo que se calou, e dirigindo a voz para o rapaz, perguntou: __ Vamos, meu filho, diga para todos nós: que bunda é essa? O rapaz apontou novamente para o Grande Rei: __ essa que o senhor desenhou aí na parede do teatro, ó! __ As pessoas se entreolharam e os fuxicos começaram. Duas senhoras bem vestidas e aparentando uma grande dignidade cristã, se perguntaram num sussurro: __ Você está vendo ali alguma nádega? __ Não, e você está? __ Claro que não! Cruzes Ave Maria... __ e faziam, horrorizadas, o sinal da cruz. O Governador mais uma vez se dirigiu ao rapaz: __ você não está brincando comigo, está? Não tem bunda nenhuma desenhada ali, meu caro! De onde você tirou essa idéia absurda? __ desculpe, Governador... Mas tem sim... E ó, ta apontada diretinha, diretinha pra cá! O Governador, por fim, começou a se impacientar e tentava, com algum sucesso, encobrir o seu desconcerto: __ Escute aqui... Se você continuar com essa idéia indecente, serei obrigado a tomar uma atitude, entendeu? __ O rapaz, indiferente à ameaça do Governador, disse divertidamente: __ Isso... Está começando a colocar as manguinhas de fora, não é? Por que o senhor não vai desenhar mais dessas coisas por ai? Essa já é suficiente, não é mesmo? Também pudera! Com esse tamanho todo, parece até a da Eufrosina! __ A esta altura, muitas pessoas que se encontravam no meio da multidão, não aguentando mais, desataram a rir. Eram pessoas que estavam se prendendo por estarem ao lado de suas esposas que, ao desprendimento dos maridos aprontaram o que pode se chamar de um furacão... O que se via e ouvia eram gritos de protestos, bolsas e sombrinhas voando para todos os lados, risos e gozações, tapas, enfim, um fuzuê dos diabos. Ninguém mais ouvia os chamados inflamados do Governador pedindo silêncio que, pelo andar da carruagem, perdera as estribeiras. Até a Eufrosina, muito bem lembrada por sua deformidade traseiral, subiu ao palanque sem se dar conta do Governador que não passava de um “comum” frente ao circo armado. Eufrosina dizia aos berros que queria ser indenizada por terem lhe roubado o traseiro sem pedir permissão. Dizia que ele só era usado quando devidamente pago pelos maridos que ali estavam, e começou a apontá-los desavergonhadamente. Algumas mulheres desmaiavam; outras, mais donas, batiam nos maridos e o Governador nada mais fazia, só olhava furiosamente para o rapaz que se mantinha indiferente e absorto perante a confusão que armara. Até o padre Silvestre, muito respeitado na cidade, apareceu e também subiu ao palanque. __ calma meus filhos, calma! Não há motivo para tamanha desordem! Jesus Cristo disse: “respeitai-vos uns aos outros”! Vamos dar razão a essas nobres palavras, por favor, por favor! __ Às palavras do padre, a multidão foi se aquietando e quando ficaram em silêncio, o padre continuou: __ Bem, agora que estamos todos calmos, vamos por parte... De quem é a nádega? __ “da Eufrosina! Do Governador! Do Rei, do Rei! É do senhor mesmo, padre Silvestre!” __ A gritaria recomeçou. Ninguém mais fazia o povo calar. Vozes vinham de toda parte. O padre estava indignado por ter sido dado como dono daquele objeto repugnante..., a Eufrosina estava indignada, as mulheres estavam indignadas pela traição dos maridos, os homens estavam indignados pela submissão revelada publicamente às mulheres alheias. Só o rapaz, que tudo começou se mantinha calmo, e o Governador, paralisado, furioso. Ao sinal desse, ressoou no ar tiros de escopetas dados pelos policias que se encontravam, até então, ao lado do Governador sem nada fazer. A multidão, assustada, começou a dispersar em gritos de horror. Foi uma correria medonha... Uns trombavam com outros, caiam, se levantavam, corriam, se escondiam, e ninguém se dava conta das mulheres e das crianças, era cada um por si e olhe lá... Essa grande confusão continuou ainda por alguns minutos, até que aos poucos as ruas foram se esvaziando. Quando finalmente cessou e não se encontrava nenhuma alma viva por onde quer que se olhasse, o Governador furioso viu, andando tranqüilamente e assobiando uma música calma e alegre, somente o rapaz indo embora rodando na mão o galho de goiabeira. Neste instante, o Governador chamou o seu assessor e, ao pé do ouvido, se referindo ao rapaz que já sumia pelas ruas calmas da cidade, disse: __ Você sabe o que fazer! Trate-o bem... Ah, e não se esqueça de verificar se ele tem família... Se tiver, mande-os um telegrama em meu nome demonstrando os meus... Bem, você sabe... __ sim, senhor! Dizendo isso, o Governador desceu do palanque, entrou no seu carro e foi-se embora tranqüilamente enquanto a noite caia linda e silenciosa banhando as paredes magníficas do grande teatro que, intocável e poderoso, dormia sem se preocupar.